sexta-feira, 26 de março de 2010

TELEVISÃO E FORMAÇÃO

Theodor Adorno

Kadelbach – Ultimamente a televisão ocupou um espaço crescente nas discussões relacionadas à formação de adultos. Durante muitos anos as Escolas Superiores de Educação Popular (Volkshochschulen) que ofereciam formação para adultos consideraram-se prejudicadas pela televisão, alegando que o público teria se afastado pela entrada em cena deste novo meio de comunicação de massas.

No curso dos últimos dois anos tentou-se sair dessa situação conflitiva, procurando-se tematizar a televisão sobretudo em sua relação com a formação de adultos. O presidente das Escolas Superiores de Educação Popular da Alemanha, Hellmut Becker, tomou posição em relação ao tema no artigo "Televisão e formação" na revista Merkur. Paralelamente, muitos grupos de trabalho no âmbito da própria televisão e grupos de intercâmbio com esta no âmbito das Escolas Superiores de Educação Popular revelaram que este veículo já não é visto a partir de urna perspectiva de confronto, mas que se procura estreitar as relações e a convivência com ele.

Naturalmente a isto relaciona-se todo um conjunto de questões e inter-relações pedagógicas, metodológicas e até mesmo epistemológicas. Assim, fomos motivados a debater a fundo a questão da televisão e da formação. Urna tal ordem de problemas não pode ser abordada e explicada exclusiva— mente pela perspectiva prática. Por isto pedimos a colaboração do professor Theodor Adorno, filósofo e sociólogo de Frankfurt, para participar nesta discussão com o professor Becker. Os conhecimentos do professor Adorno em relação à televisão provêm de um estudo analítico meticuloso deste veículo nos Estados Unidos, onde procurou investigar os programas de televisão e seu público. Pensa que estes dois enfoques, o Ponto de vista prático e o prisma do observador analítico, poderão proporcionar a este debate boas perspectivas de discussão e de orientação.

Senhor Adorno, o senhor conhece os esforços de aproximação realizadas pelas Escolas Superiores de Educação Popular em relação à televisão. Qual é a sua opinião a respeito?

Adorno – Começo destacando que o conceito de formação possui um duplo significado em face da televisão, e espero não ser considerado pedante ao me deter na distinção desses dois significados.

Por um lado é possível referir-se à televisão enquanto ela se coloca diretamente a serviço da formação cultural, ou seja, enquanto por seu intermédio se objetivam fins pedagógicos: na televisão educativa, nas escolas de formação televisivas e em atividades formativas semelhantes. Por outro lado, porém, existe urna espécie de função formativa ou deformativa operada pela televisão como tal em relação à consciência das pessoas, conforme somos levados a supor a partir da enorme quantidade de espectadores e da enorme quantidade de tempo gasto vendo e ouvindo televisão. Contudo, é importante ressaltar que as pesquisas ainda não encontraram uma resposta específca à pergunta tão popular nos Estados Unidos: "What television does to people? (Que efeitos a televisão provoca nas pessoas?)". Talvez possamos retornar ao tema posteriormente.

Se houve alguma espécie de controvérsia entre as posições de meu amigo Becker e as minhas, certamente devem-se a que em seus trabalhos ele se interessou pelo significado pedagógico especifico da televisão, enquanto, como sociólogo da educação, preocupei-me mais com os efeitos de transmissões sem objetivo educacional explícito, principalmente encenações televisivas. É necessário esclarecer bem esta questão, para eliminar falsas querelas. Porém disto, gostaria de acrescentar que não sou contra a televisão em si, tal como repetidamente querem fazer crer. Caso contrário, certamente eu próprio não teria participado de programas televisivos. Entretanto, suspeito muito do uso que se faz em grande escala da televisão, na medida em que creio que em grande parte das formas em que se apresenta, ela seguramente contribui para divulgar ideologias e dirigir de maneira equivocada a consciência dos espectadores. Eu seria a última pessoa a duvidar do enorme potencial da televisão justamente no referente à educação, no sentido da divulgação de informações de esclarecimento. A meu ver, o ponto de partida para uma discussão como esta estaria em situar-se de modo eqüidistante, tanto, por um lado, do pensamento daqueles que consideram apropriado não deixar entrar em suas casas algo assim, quanto, por outro, daqueles que dizem: "sou uma pessoa moderna, e por isto mesmo, superficial", e que nesta medida cultivam a televisão por considerá-la moderna. Pois, para começar, o que é moderno na televisão certamente é a técnica de transmissão, mas se o conteúdo da transmissão é ou não é moderno, se corresponde ou não a uma consciência evoluída, esta é justamente a questão que demanda uma elaboração crítica.

Becker –Creio que nesta base poderemos concordar com relativa facilidade, na medida em que meu interesse é evitar que, a partir da resistência que a televisão encontra entre os intelectuais e pedagogos na Alemanha, ela possa desenvolver com mais facilidade ainda suas danosas conseqüências especificas. Todos conhecem o ditado segundo o qual o dinheiro se vinga preferencialmente em quem o despreza. Analogamente me parece ser o perigo de muitos intelectuais e professores alemães que dizem: "nós não temos televisão para evitar a interferência em nosso ambiente íntimo", quando a resistência leva o filho do intelectual ou do professor a assistir à tevê na casa do operário nas proximidades e submeter-se sem qualquer preparo àquele veículo. Penso que o importante é nos conscientizarmos tanto da função educacional a que o senhor se referiu, da função educativa de esclarecimento da televisão, quanto do perigo da sedução que ela representa, e que a partir desta dupla consciência se gerem instituições apropriadas a ensinar televisão, ou seja, introduzir ao uso deste veículo de comunicação de massa, seja na educação de adultos, seja na escola.

Kadelbach –Esta é uma referência ao público espectador, senhor Becker?

Becker –Creio que isto vale também para os que fazem tevê. Quando se afirma que a televisão deve servir ao entretenimento, à informação e à educação, então pressupomos que entretenimento, informação e educação colaboram na formação do desenvolvimento humano, isto é, do espectador e do ouvinte. Por isto não pode ser indiferente à opinião pública o que acontece efetivamente na tevê em termos de entretenimento, informação e educação. A pergunta que se coloca para a opinião pública é: como podemos conseguir que o efeito de esclarecimento da televisão se amplie e os perigos que ela representa se reduzam a um mínimo inevitável.

Kadelbach – Talvez o senhor possa detalhar melhor sua concepção do "efeito de esclarecimento" da televisão, O senhor se refere à parte informativa deste veículo ou entende a questão num sentido mais amplo?

Becker ––Eu diria que a televisão pode significar esclarecimento num sentido bastante direto. Ao mesmo tempo é preciso ter muita clareza em relação a que nestes planos naturalmente diminui a capacidade de organizar os acontecimentos, motivo pelo qual na mesma situação em que são maiores os efeitos de esclarecimento da televisão, também se manifesta mais fortemente seu poder de sedução. É isto que torna o problema tão importante e tão difícil.

Kadelbach —-- Se entendi corretamente, a sua proposta é conseguir com que o maior número de pessoas aprendam a entender esta função de esclarecimento da tevê e aprendam a relacionar a mesma à sua própria existência ou personalidade ou vida. Isto é correto?

Becker ––Sim, e principalmente as pessoas que "fazem" tevê precisam refletir profundamente acerca de sua atividade.

Adorno ––Creio que o conceito de informação é mais apropriado à televisão do que o conceito de formação, cujo uso implica certos cuidados, e que provavelmente não é tão apropriado em relação ao que acontece na tevê.

Além disso, penso que a informação ultrapassa o mero piano da transmissão de fatos. Por exemplo: quando se viu efetivamente o que ocorreu no Parlamento junto ao episódio referido a respeito no semanário Der Spiegel e se manteve o poder de reflexão a respeito, certamente se obteve uma exposição sobre o assunto que possibilita um melhor juízo a seu respeito do que quaisquer longos discursos acerca de procedimentos a serem usados na efetivação legislativa de projetos de lei.

De resto, estou totalmente de acordo com seu ponto de vista, senhor Becker, pelo qual é necessário ensinar os espectadores a verem televisão. O quanto eu concordo com o senhor pode ser verificado a partir do titulo ––um pouco irônico, é bem verdade ––do estudo que fiz nos Estados Unidos sobre a televisão: "How to look at television?’, que significa "Como ver tevê?". Mas, abstraindo da ironia do título sem injuriar nossos espectadores, percebe-se a existência da questão de fundo: como ver tevê sem ser iludido, ou seja, sem se subordinar à televisão como ideologia. Em outros termos: o ensino que o senhor sugeriu na discussão acerca desses veículos de comunicação de massa não deveria consistir apenas em aprender a escolher o que é certo, e na apreensão do mesmo por meio de categorias, mas, desde o início, este ensino deveria desenvolver as aptidões críticas; ele deveria conduzir as pessoas, por exemplo, à capacidade de desmascarar ideologias; deveria protegê-las ante identificações falsas e problemáticas, protegendo-as sobretudo em face da propaganda geral de um mundo que a mera forma de veículos de comunicação de massa desta ordem já implica como dado.

Kadelbach —- Posso interrompê-lo por um momento, senhor Adorno? O senhor referiu-se a que a televisão ela mesma poderia ser uma ideologia, para em seguida utilizar mais uma vez o mesmo termo ideologia exatamente no contexto do perigo em subordinar-se a uma ideologia. No sentido de proporcionar clareza conceitual, talvez fosse apropriado o senhor explicar o que entende por "televisão como ideologia?"

Adorno –– Em primeiro lugar, compreendo "televisão como ideologia" simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vicio televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de comunicação de massa, converte-se pela sua simples existência no único conteúdo da consciência, desviando as pessoas por meio da fartura de sua oferta daquilo que deveria se constituir propriamente como seu objeto e sua prioridade. Esta espécie de instrução para ver tevê que constitui a sua sugestão, senhor Becker, deveria imunizar tanto quanto possível as pessoas em relação a esse caráter ideológico desse veículo de comunicação, antes de se referir a qualquer outra ideologia em especial.

Becker -–– Posso sugerir uma versão bem direta da questão? Penso que no funda existe o perigo de os jovens procurarem imaginar o amor, por exemplo, tal como ele é apresentado na tevê, isto é, assumam para relações humanas muito diretas representações estereotipadas antes que eles mesmos as tenham vivido. E que em seu próprio desenvolvimento procedam fixados em representações estereotipadas.

Kadelbach ---- Apresentação prévia de susbtitutivos.

Becker –– Justamente, e a questão relativa a como enfrentar esta situação coloca-se muito mais em relação a novelas de televisão do que em relação a programas acerca de assuntos políticos.

Adorno –– Muito bem!

Becker –– Precisamente porque a política, ao menos tal como se apresenta na tevê entre nós, é apresentada com forte acentuação nos debates, apresentando pontos de vista divergentes entre si, enquanto no relativo às posições fundamentais na vida cotidiana expressas nessas novelas, são veiculadas coisas que se transferem com muito mais força ao inconsciente, a partir do que, obviamente, tornam-se muito mais perigosas.

Adorno –– Em minha opinião, no fundo, em sua configuração usual, essas novelas são politicamente muito mais prejudiciais do que jamais foi qualquer programa político.

Becker –– Certo. Se hoje eu fosse fazer um filme sobre o Terceiro Reich, não mostraria as tropas da SA em marcha, mas procuraria apresentar trechos de filmes de amor rodados naquele período, e provavelmente nestes termos nos acercaríamos do clima do Terceiro Reich de um modo muito mais sutil. Mas a pergunta que se apresenta em programações deste tipo é: a televisão pode ser melhor do que a sociedade em que ela se encontra? Ela poderia, por assim dizer, atuar sobre a sociedade, ou então, para usar uma terminologia usual, funcionar como ‘instituição moral", ou trata-se meramente de um espelho da sociedade?

Adorno –– Em relação a esta questão, é possível afirmar de um modo geral que uma instituição tão prestigiada pela sociedade como a televisão evidentemente está comprometida em sua própria antologia com a sociedade. Mas penso que neste assunto é preciso evitar uma reflexão mecânica. Na medida em que uma série de pessoas com posições críticas, autônomas e freqüentemente até oposicionistas, colaboram na produção dos programas, torna-se possível romper em certo sentido as barreiras do existente simplesmente apoiando-se nas relações pessoais especificas e sobretudo na competência técnica de pessoas que têm o que dizer e fazer quanto a este assunto. Enquanto existirem pessoas tecnicamente competentes em televisão que percebem que certas encenações, como as peças de Beckett, por exemplo, são particularmente apropriadas a este veículo de comunicação de massa, pessoas além disto dotadas de energia suficiente para programar o Último elo de Beckett pelo rádio e pela tevê, em vez de veicular uma família comum dessas que tem nome diferente conforme a região, então eu diria que uma tal programação vai além da tevê nos termos vigentes, podendo contribuir para transformar a consciência das pessoas. Paradoxalmente, a relativa fixação das burocracias no interior de determinadas instituições da indústria cultural permite a essas instituições se comportar de maneira menos conformista do que se estivessem sob um controle aparentemente democrático.

Becker –– Gostaria de relatar um exemplo extremamente interessante que a UNESCO promove, por enquanto apenas nas regiões mais atrasadas dos países civilizados. Como se sabe, a cinqüenta ou sessenta quilômetros de Paris existem aldeias em que não há sequer água corrente, quanto mais saneamento ou coisa semelhante, onde as pessoas vivem num estado de consciência inimaginável a sessenta quilômetros de Paris. Nesses locais a UNESCO instalou experimentalmente aparelhos comunitários de televisão. A população da aldeia se reuniu em torno à tevê, e certas personalidades foram convidadas a discutir determinados programas com a população. Verificou-se que a partir disto poderia ser implantada uma espécie de urbanização abrangente, que talvez não representa uma formação cultural no sentido clássico, mas que para essas pessoas desempenhou uma função formativa decisiva para a participação na vida atual.

Não quero chegar ao ponto de afirmar que considero inevitável que, por exemplo, nos países em desenvolvimento, as pessoas assistam à tevê antes de serem alfabetizadas. Porém, na prática, a situação é esta, e nesta medida a televisão converte-se em um meio com que esta sociedade em que vivemos se adapta a si mesma. Evidentemente, senhor Adorno, desenvolvem-se neste plano todos os problemas relacionados ao processo de adaptação em geral. Por um lado, acontece por esta adaptação algo de essencial ao funcionamento de nosso mundo moderno. Por outro, acontece algo de muito perigoso, a que o senhor repetidamente atentou.

Adorno –– Para não haver mal-entendidos, destaco que considero as coisas relatadas pelo senhor como sendo totalmente inofensivas. Se em regiões tão atrasadas em meio a países de resto altamente desenvolvidos, a televisão possa induzir os trogloditas a abandonarem suas cavernas, eu me alegraria acerca dessa situação tanto quanto o senhor. Nos termos de minha crítica à televisão, não me opus a que ela torne as cavernas dos trogloditas mais desagradáveis, pois uma casa higiênica me apraz mais do que uma caverna simpática. Localizo o perigo em questões bem diversas. Exatamente em que, por toda a parte onde a televisão aparentemente se aproxima das condições da vida moderna, porém ocultando os problemas mediante rearranjos e mudanças de acento, gera-se efetivamente uma falsa consciência. Nem considero tão prejudicial assim o aprendizado do amor a partir da televisão, pois com freqüência podemos ver moças muito bonitas na tevê e, afinal, por que os adolescentes não deveriam se apaixonar por moças tão bonitas? Não considero isto perigoso. Mesmo que por essa via aprendam certos costumes eróticos, isso não seria desvantajoso. Valéry disse certa feita que no fundo o amor é aprendido nos livros, e o que vale para os livros também deveria bastar à televisão.

Kadelbach –– (E bons costumes sempre são úteis.)

Adorno –– E bons costumes sempre são úteis.

Kadelbach –– A pergunta que se coloca é se de fato aprendem bons costumes.

Adorno –– Provavelmente até um certo ponto sim, ainda que seja de uma maneira muito superficial e meramente exterior, mas que, tal como os autênticos processos de formação, avançam muito mais de fora para dentro do que inversamente, como o pretende a ideologia. Contudo, quero destacar também o que considero ser o perigo específico. Trata-se de algo relativo ao conteúdo, que nada mais tem a ver com o veículo técnico de comunicação de massa. Trata-se dessas situações inacreditavelmente falsas, em que aparentemente certos problemas são tratados, discutidos e apresentados, para que a situação pareça ser atual e as pessoas sejam confrontadas com questões substantivas. Tais problemas são ocultos sobretudo na medida em que parece haver soluções para todos esses problemas, como se a amável vovó ou o bondoso tio apenas precisassem irromper pela porta mais próxima para novamente consertar um casamento esfacelado. Eis aqui o terrível mundo dos modelos ideais de uma "vida saudável", dando aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade, e que além disto dando a impressão de que as contradições presentes desde os primórdios de nossa sociedade poderiam ser superadas e solucionadas no plano das relações inter-humanas, na medida em que tudo dependeria das pessoas. Penso que mesmo onde há apenas vestígios de uma tal tendência de harmonização do mundo é preciso se contrapor com muito vigor à mesma, e justamente os intelectuais, via de regra tão malvistos como desagregadores, prestam um grande serviço à humanidade quando denunciam embustes dessa ordem.

Becker –– Portanto, o senhor concordaria comigo que a frase de um teólogo protestante —-- "a televisão precisa mostrar uma vida familiar positiva" -— significa exatamente o que não queremos na tevê, ou seja, a representação da ilusão no lugar da apresentação da realidade dos problemas reais.

Adorno –– Considero esta frase do teólogo tão horrenda que, se precisasse caracterizá-la, me faltariam os termos diplomáticos exigidos pelo código vigente das telecomunicações.

Kadelbach ---- Senhores, trata-se, contudo, de questões usuais de comportamentos e de costumes. Vejo um perigo suplementar na existência em amplos círculos da opinião pública cultivada de uma expectativa em relação a que a televisão ofereça não só máximas de comportamento como estas, mas também desenvolva valores e padrões normativos que serviriam de referencial para todas as críticas, avaliações e enquadramentos. Ou, para ser ainda mais contundente, algo também conhecido do senhor Becker a partir das discussões nas Escolas de Formação Popular: atribuir à televisão a tarefa de tornar o mundo melhor, mais belo, nobre e verdadeiro com o auxílio das oportunidades inacreditáveis que, ao que se afirma, se baseariam nesse veículo de comunicação de massa.

Becker --–– Eu diria que a chance principal desse veículo está em, quando corretamente utilizado, possibilitar o encontro com a realidade e não com a ilusão, e seu perigo maior está em possibilitar o encontro com a ilusão no lugar da realidade. Neste sentido, todos os programadores de televisão têm uma responsabilidade decisiva em não pedagogizar a televisão em razão de sua função formativa.

Adorno —-- Gostaria de acrescentar uma referência á estética. Não há dúvida que o importante é contrapor-se. na televisão, à ideologização da vida, e eu seria o último a amainar esta exigência que o senhor expressou. Ao contrário, eu até mesmo a radicalizaria. Mas em relação a esta questão, deveríamos nos precaver do equivoco segundo o qual o que designamos como consciência da realidade precisa ser apresentado necessariamente com os meios de um realismo artístico. Justamente porque o mundo desta televisão é uma espécie de pseudorealismo, porque até mesmo o último detalhe da televisão é perfeito, e o público reclamaria se em qualquer instrumento técnico algo não fosse exatamente perfeito, provavelmente por isto no veículo televisivo a possibilidade de despertar a consciência da realidade vincula-se em grande parte à desistência em reproduzir mais uma vez a realidade superficial cotidiana visível em que vivemos. O embuste a que há pouco nos referimos consiste precisamente em que esta harmonização da vida e esta deformação da vida são imperceptíveis para as pessoas, porque acontecem nos bastidores. Uso o termo ‘bastidores’ num sentido amplo. Eles são tão perfeitos, tão realistas, que o contrabando ideológico se realiza sem ser percebido, de modo que as pessoas absorvem a harmonização oferecida sem ao menos se dar conta do que lhes acontece. Talvez até mesmo acreditem estar se comportando de um modo realista. E justamente aqui é necessário resistir.

Becker –– Isto afeta até o mundo da propaganda. Nós temos um tipo de propaganda que em seu primeiro plano é totalmente realista, e eu me convenci inteiramente quando recentemente li que a UNESC~ sugeriu a uma empresa telefônica, que solicitou a ela um pequeno filme de propaganda, apresentar uma senhora bem vestida com um carneiro nos braços, dizendo "este carneiro é um telefone", para deste modo fazer propaganda do telefone. Precisamente o contrário daquilo que o senhor quis dizer com o seu realismo.

Kadelbach ––Assim avançamos de modo decisivo, alcançando a possibilidade de distanciamento em relação a este veículo de comunicação de massa, e basta o simples tamanho da tela para tornar impossível apresentar de maneira realista uma cópia da vida.

Adorno ---- Só que não se toma proveito suficiente deste fato.

Becker -––Muito pouco!

Kadelbach –– Creio que foi Cocteau quem lembrou que rastros na neve e uma folha que cai podem contar uma história. É preciso justamente atentar mais para esta utilização de símbolos com distanciamento, cujo aprendizado, aliás, também seria importante para os produtores e para os espectadores.

Becker —- Poderíamos investigar muito mais a fundo tudo isso se dispuséssemos de um controle mais intensivo da transmissão por meio de pesquisas especificas. É digno de nota que na Alemanha, por exemplo, se façam pesquisas para descobrir se as pessoas gostaram do programa, o que pessoal-mente considero relativamente desinteressante. Por outro lado, consideraria muito interessante se existissem pesquisas que acompanhassem durante anos toda uma série de programas, que investigassem sociologicamente os efeitos dessas programações sobre determinados grupos de pessoas. Creio que uma tal "pesquisa de controle" de longo prazo poderia servir para se aprender com mais precisão o que a televisão afinal promove ou o que ela provoca.

Adorno –– Em relação a este problema, a investigação sociológica empírica se encontra numa situação bem difícil. Pois até hoje, utilizando seus procedimentos mais sofisticados, ela conseguiu descobrir relativamente pouco acerca deste assunto. Provavelmente isto se deve a que justamente os processos profundos aos quais também o senhor Becker se referiu há pouco ocorrem de um modo tal que são dificilmente apreensíveis como efeitos de programas individuais ou senados, mesmo usando os métodos mais aprimorados. É difícil assegurar-se daquilo que como processo inconsciente constitui propriamente o contra-senso.

Becker –– Senhor Adorno, penso que o senhor mesmo, juntamente com Pollock e Horkheimer, revelou em suas discussões de grupo que existem métodos que, além de qualquer investigação quantitativa, são apropriados para expor à pesquisa sociológica determinadas camadas do inconsciente das pessoas.

Adorno –– Sim, eu concordo. Entretanto penso que nesta questão não avançamos muito mediante os procedimentos usuais de questionários e nem com as mais sofisticadas pesquisas de opinião, mas que aqui o método mais plausível efetivamente é a content analysis (análise de conteúdo), ou seja, a análise dos próprios fenômenos, em que seria possível inferir mais ou menos o significado das conseqüências dos fenômenos para as pessoas, mesmo que este efeito não possa ser registrado. Nesta medida gostaria de chamar a atenção para que não se veja isoladamente a televisão, que constitui somente um momento no sistema conjunto da cultura de massa dirigista contemporânea orientada numa perspectiva industrial, a que as pessoas são permanentemente submetidas em qualquer revista, em qualquer banca de jornal, em incontáveis situações da vida, de modo que a modelagem conjunta da consciência e do inconsciente só pode ocorrer por intermédio da totalidade desses veículos de comunicação de massa. Sugiro efetivamente começar detendo-se na configuração do material e na sua integração, para exercer a crítica a partir deste ponto, sem confiar em que, com os métodos positivistas usuais seja possível registrar essas coisas, sem confiar em que isto atue sobre as pessoas efetivamente hic et nunc (aqui e agora) diretamente como se poderia supor a partir da análise deste material. Contudo, esses talvez sejam detalhes acerca das técnicas de investigação que podem ser deixados de lado aqui. Mas um ponto é fundamental: o fato de não podermos demonstrar com precisão como essas coisas funcionam naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo por isto provavelmente muito mais danoso.

Becker ---- Além disto creio mesmo assim ser necessário atribuir um plano muito maior a esta pesquisa, apesar de todas as dificuldades. Seria preciso esclarecer também o que, no efeito relatado da televisão, falta em especial entre nós, por exemplo, revistas que introduzam mais objetivamente à programação, possibilitando ao espectador uma opção de escolha muito mais consistente e, principalmente, uma programação fundamentada com muito mais força nos possíveis efeitos que provoca e assim por diante. Tudo isto pressupõe uma pesquisa orientada justamente para estes problemas, tomando-se apenas o cuidado de evitar respostas padronizadas. Mas a pesquisa é necessária de um modo totalmente diferente, porque numa instituição de formação — o que aliás se aplica ao conjunto de toda a formação de adultos que não é centrada em exames — os resultados são controlados somente por meio de uma investigação científica. Na ausência de controle, toda a instituição poderia se perder, por assim dizer, em suas próprias ilusões. Portanto, insisto na necessidade desse tipo de pesquisa, tanto para os resultados do trabalho das Escolas de Formação Popular, quanto para os efeitos da televisão.

Kadelbach –– Talvez haja um campo em que isto possa ser praticado em breve. Existem preparativos para a introdução de uma televisão educativa, e uma série de classes, incluindo seus professores, foi interrogada detalhadamente a esse respeito. No início de nossa discussão, o senhor Becker afirmava que muitos professores temiam que a esfera íntima da educação pudesse ser perturbada pela invasão da sala de aula pela televisão. Talvez justamente aqui se localize uma base para desenvolver critérios e métodos que poderiam depois se tornar exemplares para casos semelhantes e subseqüentes.

Becker –– Também penso assim. Creio que, obviamente, a televisão educativa precisa se subordinar a condições especiais. Os resultados de pesquisa que se tem em mente ao se examinar a televisão educativa neste sentido mais detidamente, não possibilitam uma transferência automática para outros âmbitos. Isto pode ser concluído já a partir do fato de que a televisão educativa se inclui em moldes inteiramente diferentes em uma instituição fechada. Pessoalmente considero a tevê educativa como um meio de formação que deveria ser introduzido na escola, precisamente porque oferece a possibilidade de incluir na escola de modo estimulante um ensino particularmente qualificado.

Nos Estados Unidos acompanhei algumas dessas experiências de televisão educativa e, ao contrário do que imaginava anteriormente, ou seja, que seria muito difícil transmitir a intensidade de uma boa aula através da televisão, o que ocorre é que a aula, naturalmente muito melhor preparada e muito mais cuidadosamente executada para ser televisiva, tem um grande poder de atração, provocando assim o risco de que os alunos poderiam a seguir se entediar com as aulas normais. Por outro lado, é preciso deixar bem claro que a suposição de economizar professores na escola tradicional por meio da televisão é incorreta. Um ensino através da televisão evidentemente só funciona de modo correto quando um professor presente à transmissão discute e explica o que foi apresentado. Além disso, penso que numa época de perda de qualidade, a televisão representa a oportunidade de uma multiplicação da qualidade pela ampliação constante da formação cultural. De um certo modo é difícil deixar de lado esta possibilidade, porque ainda não formamos um contingente suficiente de pessoas qualificadas para corresponder às demandas numericamente crescentes sobre o sistema formativo educacional. Evidentemente, a televisão educativa tem a vantagem do controle imediato. Nos Estados Unidos isto é feito ao se reunir os professores que acompanham essas aulas num âmbito maior em intervalos regulares com o "professor televisivo". Nessa ocasião ocorre uma crítica bastante forte ao programa especifico, que evidentemente precisa provocar efeitos positivos sobre a programação subseqüente. Penso que isto serve também para uma conclusão importante sobre a televisão em geral: que tanto a crítica como a repetição representam uma oportunidade muito grande da televisão. Até agora, com um programa nós imaginávamos que a repetição seria algo problemático. Agora constatamos que, por exemplo, um ótimo curso de formação de professores de Física dotado de experimentos excelentes pode tranqüilamente ser repetido após um ano. Ele não se tornou pior por causa disto e encontra muitos novos interessados. Contudo, isso pressupõe toda uma nova organização de programação em face da existente até então, apontando, inclusive, para além da televisão educativa, a pergunta relativa a se vale a pena ter determinados programas de formação na televisão.

Adorno –– Gostaria de ainda acrescentar algo à questão da televisão educativa. A questão levantada aqui é muito complexa. De um lado, o chamado imediatismo do ensino, aquilo que se denomina de "situação de transferência" entre o professor e os alunos. Por outro, a possibilidade de um ensino técnica e qualitativamente muito aperfeiçoado mediante uma televisão centralizada. Questões como essa, em que os prós e contras dificilmente podem ser avaliados pela mera reflexão, constituem o caso ideal daquilo que pode ser decidido mediante a investigação empírica. Seria bastante fácil imaginar uma situação experimental em que a mesma matéria, Física, por exemplo, é transmitida a um grupo de crianças por meio de bons professores na sala de aula, e a seguir oferecida pela televisão educativa. Seria preciso investigar em qual desses cursos as crianças aprenderam mais, entrevistando na seqüência as crianças e comparando-se os resultados. Coisas assim podem ser medidas com métodos investigativos precisos. Em outras palavras: o lado informativo da televisão, que nos parece ser o mais produtivo, é simultaneamente aquele que se expõe mais facilmente às modernas metodologias de pesquisa, possibilitando efetivamente decidir entre o que apresenta de bom e de ruim. Com base nos resultados seria possível inclusive introduzir aperfeiçoamentos específicos ou soluções intermediárias, combinações e toda uma gama de opções desse tipo. Porém interrompi o senhor Becker justamente quando queria referir-se a um problema muito relevante e igualmente difícil, ou seja, as programações orientadas para grupos específicos e a televisão formativa.

Becker –– Eu pretendia abordar a questão do sentido de produzir determinados programas formativos, ou seja, a concepção do "terceiro programa" nos termos da televisão. Considero muito perigoso concentrar a concepção de formação cultural em um programa, liberando, por assim dizer, os outros programas da responsabilidade pela função formativa da televisão. Isto deve ser evitado. Embora na programação televisiva vigente sejam levados em conta os problemas específicos que se apresentam, por exemplo, na formação de adultos, sempre quando acontece uma manifestação dessa ordem num programa especifico, os efeitos poderiam muito bem influenciar a programação televisiva como um todo. Acho que foi Klaus von Bismarck quem introduziu a expressão programa para minorias qualificadas". Em minha opinião elas não constituem uma minoria qualificada única, mas sim minorias qualificadas conforme a estrutura do programa.

Kadelbach —-- Aqui é necessário perguntar: quem qualifica as minorias que se consideram qualificadas?

Becker –– Ao que tudo indica, elas se qualificam a si mesmas, por exemplo, na medida em que se dispõem a aprender russo pela tevê, ou então assistir a uma exposição de Hellmut Becker e Theodor Adorno.

Adorno –– O problema que o senhor abordou é efetivamente central, e a partir dele é possível aprender algo das contradições em nossa sociedade. Aliás, isto vale não só para a tevê, mas também para o rádio, por exemplo para programas musicais, para tudo o que se relaciona a essa "terceira programação" das rádios. Trata-se de uma questão que conheço bem sobretudo no que se refere à música moderna. Neste caso, o que expus em contextos de sociologia da música, que nada tem a ver com esta nossa discussão, por meio dessa especialização de programas ocorre um reforçarnento da "neutralização da cultura". Ou seja, justamente o que é novo, o que é avançado, o que é espiritual passa a ser desvalorizado e marcado como questão para "especialistas" — termo que permite evitar a horrorosa expressão "gostos refinados". Mas do outro lado encontra-se a pressão plebiscitária de incontáveis ouvintes e espectadores, cuja única preocupação está em não serem subestimados, pressão tão forte que acaba eliminando as coisas mais importantes da programação. A antinomia social consiste precisamente na enorme distância entre a qualidade intelectual, de um lado, e as demandas dos consumidores, por sua vez já manipuladas, por outro. Se eu fosse diretor de programação, começaria a ter noites de insônia. Como felizmente sou apenas um pensador teórico diria que é necessário tentar ambas as coisas: por um lado, é preciso dar abrigo na televisão às coisas que não correspondem aos interesses do grande público, como os programas qualificados para minorias. Estes, contudo, não devem ser hermeticamente fechados, mas, mediante uma política de programação inteligente e conseqüente, precisam ser levados ao contato das outras pessoas, no que provavelmente o meio do choque, o meio da ruptura será mais produtivo do que o gradualismo, embora também nesta questão haja a "formação da tradição". Lembro nesta oportunidade o que aconteceu no plano da música: Hübner desenvolveu em Hamburgo, já há muito tempo, um determinado programa com música de qualidade exponencial, a "nova obra". Com um planejamento conseqüente de longo prazo, gradualmente se formou um grande público para os concertos, inclusive freqüentando o auditório da Rádio de Hamburgo. Penso que seria possível desenvolver algo semelhante no âmbito da televisão, inclusive porque no plano visual as resistências são menores que no plano musical. Seria preciso estabelecer um planejamento comum adequado entre os setores que se encarregam da programação para as minorias qualificadas e os responsáveis pela programação para o grande público, discutindo os problemas, inclusive sociológicos, que se apresentam neste plano. Quem sabe com programações orientadas por esta via poderíamos até abrir uma brecha na barreira do conformismo.

Becker -–– E justamente nesta questão seria decisivo ocupar-se do problema relativo ao que acontece com as pessoas depois de assistirem aos programas. O que acabei de relatar no caso das aldeias perto de Paris repetir-se-ia agora num plano totalmente diverso, não necessariamente nos termos da recepção comunitária, mas talvez sob a forma do encontro de grupos que levam em frente as coisas que apreenderam com a televisão, na medida em que uma das experiências fundamentais da formação de adultos consiste em que a integração só ocorre a partir de uma tomada de posição própria. Na medida em que não se apresente um espaço organizatório próprio para esse posicionamento individual, há o risco de que as coisas também não sejam absorvidas nem mesmo entre as minorias qualificadas.

Kadelbach –– Por tal perspectiva fica claro que pessoas e grupos das Escolas de Formação Popular se coloquem à disposição dos produtores da programação televisiva para que as matérias veiculadas na tevê sejam aprofundadas, meditando a seu respeito, interiorizando-as e interagindo com as mesmas, para não permanecerem meras declamações vazias, possibilitando ao menos, em seus termos iniciais, o que se chama de formação cultural.

Adorno –– Para terminar, sem parecer imodesto e por mais parcial que isto seja, gostaria de apresentar algumas conclusões desta conversa.

O veículo técnico da televisão é novo. Mas os atuais conteúdos, procedimentos e tudo o que se relaciona aos mesmos ainda são mais ou menos tradicionais.

Pelo prisma do veículo de comunicação de massa a tarefa que se coloca seria encontrar conteúdos e produzir programas apropriados em seu conteúdo para este veículo, e não impostos ao mesmo a partir de seu exterior. Esta talvez seja a grande contribuição de nosso debate: tudo o que elaboramos positivamente — o significado do elemento informativo e documentário, a importância da montagem e do distanciamento frente ao realismo, a importância de uma interação entre pesquisa e produção, o rompimento de toda a esfera íntima da escola e por fim a interação entre programas especiais e programação geral —, que são inovações que parecem estar em conformidade com a configuração social e tecnológica específica deste veículo de comunicação de massa, e que todos parecem se opor a tentativas de copiar ou divulgar em sua forma ou em seu conteúdo quaisquer bens culturais tradicionais por meio da televisão. Nestes termos apresentaria uma espécie de cânone ou linha de orientação para o que deveria ser o rumo da televisão, para que ela represente um avanço e não um retrocesso do conceito de formação cultural.

Becker — Isto precisa se refletir também na organização, nos grupos de controle e de programação da televisão, cujos produtores precisam tematizar as questões a que o senhor se referiu. Na medida em que isto ocorrer, será possível uma televisão no sentido delineado pelo senhor.

sexta-feira, 19 de março de 2010

O LOBO DA ESTEPE

Hermann Hesse
"Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser um noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas ideias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e de independência.
Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a vida, preferia passar fome e andar mal vestido a sacrificar uma parcela de sua independência. Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representa vantagens e regalias, a fim de salvaguardar a sua liberdade. Nenhuma idéia lhe era mais odiosa e terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel. Sabia subtrair-se a todas essas coisas, a custo de grandes sacrifícios e nisso residia sua força e virtude, nisso era inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firme e retilíneo.
Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que se dá com todos o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxuoso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar.
Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença. O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social.
Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. Pelo contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não podia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida."